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Entrevista de Isabel Maria
Design, Indústria e Património no Turismo Industrial em Portugal
Deolinda Folgado, investigadora e especialista em património industrial, fala sobre o papel do design na valorização dos espaços fabris, os desafios do turismo industrial em Portugal e o potencial da Fábrica de Moagem como núcleo vivo de cultura e memória.
Desde o período da sua formação académica que Deolinda Folgado se interessou por temas relacionados com os vestígios patrimoniais associados à indústria nas suas várias vertentes, desde a paisagem, ao urbanismo, à arquitectura, à habitação, às sociabilidades e aos objectos. Dentro desta área coordenou vários inventários a nível nacional, procedeu à elaboração de várias propostas de classificação de património e ou arquitectura industriais, acompanhando vários casos a nível nacional. Ministrou na FCSH.NOVA a cadeira opcional de Museologia Industrial no Mestrado de Museologia. O seu Doutoramento versou sobre o urbanismo e arquitectura da indústria moderna, essencialmente de Lisboa – “A Nova Ordem Industrial no Estado Novo. Da Fábrica ao Território de Lisboa. 1933-1968”. Autora de inúmeros artigos, livros sobre esta temática. Actualmente, desempenha funções de coordenação no âmbito da instalação do futuro núcleo do Museu de Lisboa, a Fábrica de Moagem.
Nesta entrevista exclusiva, Deolinda Folgado — investigadora, curadora e especialista em património industrial — fala-nos sobre o papel transformador do design na revalorização dos espaços fabris, a importância de políticas públicas e redes colaborativas, e o desafio de afirmar Portugal como destino de turismo industrial criativo. A conversa decorre no contexto da Lisboa Design Week, que deu o pontapé de saída à exposição do arquitecto e designer Le Brimet que transforma a Fábrica de Moagem, no Beato, num ponto de encontro entre design, indústria, arte e memória até ao dia 20 de junho.
O turismo industrial tem vindo a afirmar-se como uma nova forma de conhecer Portugal — através das suas fábricas, das marcas que mantêm vivo o saber-fazer e da reinterpretação contemporânea do seu património. Acreditamos que este segmento é fundamental para ligar design, território, cultura e produção.
Como surgiu o convite ou o desafio para integrar a programação da Lisboa Design Week, com a exposição do Le Brimet na Fábrica de Moagem?
Este desafio surgiu no âmbito da preparação da programação anual que se realiza para o Beato Innovation District e simultaneamente para a Fábrica de Moagem – Museu de Lisboa / Lisboa Cultura, neste caso para o ano de 2025.
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A exposição do Brimet assume um lugar simbólico na programação, ao cruzar design e produção industrial. O que é que esta mostra representa para si enquanto especialista em turismo industrial?
Há que abordar o Turismo Industrial numa perspectiva abrangente e total, tanto quanto possível, onde os diversos actores que participam neste desígnio da criação artística e respectiva ligação à indústria estão presentes. O Turismo Industrial, terá assim de alargar a dimensão patrimonial, sem dúvida, também um dos eixos de actuação deste segmento cultural.
Na sua opinião, que papel pode desempenhar o design contemporâneo na revalorização dos espaços fabris e da indústria portuguesa viva e de património?
O design contemporâneo ou a arte contemporânea têm nos espaços industriais desafetos da sua função inicial áreas, atmosferas e contextos absolutamente convidativos para recepcionar um discurso artístico contemporâneo e até mesmo de natureza mais clássica. Claro, que os espaços industriais podem chegar até nós com estados de conservação diversos, sendo por vezes difícil de haver esta apropriação imediata e directa. Porém, os arquitectos há muito que olham para os espaços fabris com esta potencialidade em que ambas as linguagens construtivas e artísticas ganham mais força na comunicação pretendida. Destaco, apenas, a Lina Bo Bardi (1914-1992) e a SEC Pompeia (1977), em S. Paulo, Brasil.
Como tem sido o diálogo entre instituições culturais, municípios e unidades industriais no que toca à abertura das fábricas ao público, e à criação de experiências turísticas com valor cultural?
Partindo do princípio de que não é possível salvar integralmente todo o legado cultural que herdamos, apesar de ao longo da história do próprio património cultural ter havido um alargamento natural da tipologia dos bens a salvaguardar, Portugal não conseguiu até ao momento estabelecer um olhar criterioso e “igualitário” para o legado designado como herança industrial ou “Industrial Heritage”.
Um dos problemas diagnosticados, desde logo, é a ausência total de políticas públicas para o Património Industrial. Foi a partir da sociedade civil, nomeadamente no auge das associações de defesa do património cultural que emergiram as primeiras ações de reconhecimento e valorização do Património Industrial, tendo os municípios um papel bastante relevante, assim como algumas empresas, na conversão de antigos espaços industriais em museus de indústria, salvaguardando assim a identidade e a memória recentes ligadas ao trabalho fabril, à tecnologia e à técnica. Portanto, muito legado industrial com valor cultural foi e é destruído.
Um outro problema diagnosticado foi o facto de durante os primeiros anos que se começou a trabalhar sobre este legado cultural o trabalho em rede esteve ausente, dado que as medidas urgentes de actuação implicavam decisões e financiamentos suportados pelas autarquias, em primeiro lugar, com recurso muitas vezes a fundos europeus. Será importante recordar que no âmbito dos museus ou monumentos tutelados pela actual estrutura Museus e Monumentos de Portugal não existe nenhum de natureza industrial. Estes espaços museais ou pertencem a autarquias, a empresas ou a Universidades, por exemplo. Não existe, assim, nenhum museu de âmbito nacional sobre o processo de industrialização ocorrido em território nacional.
Dito isto, não são ainda muitos os exemplos conseguidos sobre as experiências de turismo industrial em território nacional. Destaco o trabalho do Turismo do Centro de Portugal, neste campo, e o Turismo Industrial de S. João da Madeira.
Portugal Faz Bem tem contribuído para mapear e activar o turismo industrial com uma perspectiva criativa e transversal – embora ainda numa fase embrionária. Como vê esta abordagem? Que lacunas o projecto vem colmatar?
Portugal Faz Bem poderá ajudar a criar um lastro de trabalho de âmbito nacional, em articulação com diversas entidades consideradas stakeholders neste domínio, de modo a acelerar a criação de activos / produtos neste segmento turístico e patrimonial.
Quais são os principais desafios que ainda se colocam à implementação sustentável do turismo industrial em Portugal? Falamos de infraestruturas, narrativas, classificações ou falta de reconhecimento institucional?
Já fui respondendo a algumas destas questões. Porém, passo a elencar de um modo muito objectivo:
– Falta de reconhecimento institucional, antes demais para o que se considera como património cultural, passado um quarto do século XXI, nomeadamente quanto ao estudo, ao inventário, à classificação, à definição de políticas, nomeadamente regionais, para o resgate, refuncionalização desta tipologia patrimonial e consequente fruição turística.
– Inexistência de um plano nacional que olhe para os novos patrimónios, como existe em Espanha, França, Itália, etc., etc.
– Dificuldade num trabalho em rede entre os próprios ministérios que tutelam, por exemplo, a cultura, o turismo e a educação. Lembro-me de ter combatido, dentro de um grupo de trabalho, esta fragmentação e conseguimos sentar à mesma mesa a Cultura e o Turismo para a o tema “Caminho de Santiago”.
– Olhar os espaços industriais como óptimas áreas para novas edificações, esquecendo todas as recomendações internacionais quanto à reconversão e reutilização de espaços fabris.
– A ainda incompreensão, até pelos decisores políticos, da importância deste legado.
– Ora se na base do turismo industrial tem de estar um trabalho feito à priori que implica tomadas de decisão referidas acima, e é natural deste modo que a consolidação do TI seja menos conseguido e dependa, muitas vezes, de salvaguardas casuísticas.
Se pensarmos em Lisboa, por exemplo, a criação de um circuito no âmbito do Turismo Industrial também não integra nenhum museu que se encontre na esfera do estado ou do município.
Acredita que Portugal tem potencial para se posicionar internacionalmente como um destino de turismo industrial criativo, ao nível de países como França, Espanha, Alemanha ou Itália? O que falta para lá chegar?
Acredito, sim.
Que papel podem ter eventos como a Lisbon Design Week e exposições que realçam o reposicionamento da indústria portuguesa, não apenas como produtora, mas como geradora de cultura e património?
É fundamental que este olhar transdisciplinar se conecte para o desenvolvimento destas iniciativas, mostrando que é possível pensar e fazer de outro modo. Porém, importa referir que se estes espaços fabris ainda têm uma aura que os distingue é porque encerram valores culturais que implicam uma atenção nas áreas da conservação e restauro, inventário e salvaguarda e na própria interpretação. Só assim, será possível um diálogo entre o passado e o presente, projetando o futuro.
Quais são, para si, os sectores industriais portugueses com maior capacidade para contar boas histórias – e que podem ser palco de novas experiências de visita ou residências criativas?
Qualquer sector industrial poderá contar boas histórias e ser palco de experiências de visita ou residências artísticas. Claro, que será sempre necessário perceber a disponibilidade financeira e o valor social e cultural que as empresas pretendem acrescentar à sociedade em geral. Depois, será necessário definir um programa de acção, com linhas estratégicas e objectivos, de modo a criar uma narrativa que una estas várias áreas em torno da indústria, mais uma vez nos seus valores, passados, presentes e futuros, a par da valorização da criação artística.
Que mensagem deixaria aos agentes culturais, designers e industriais que ainda não exploraram o potencial turístico e narrativo das suas unidades de produção?
Muitos dos agentes culturais, designers e industriais até já podem estar despertos para esta potencialidade dos seus espaços, faltará colocá-los em diálogo e criar objectivos comuns.
Porque acha que os visitantes se devem deslocar à Fábrica de Moagem entre o dia 30 de maio e 20 de junho? O que irão ver?
Só por si, a Fábrica de Moagem é um espaço único em Portugal e em Lisboa, ao qual nestes próximos dias se irão juntar outros layers de comunicação e informação – design + indústria, o que no seu conjunto constituirá um lugar de visita obrigatório dentro da Lisbon Design Week e até dia 20 de Junho.